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sábado, 14 de julho de 2012

PEQUENAS RELIQUIAS


A maioria das pessoas não entendem, porque as mães que perdem filhos começam a desenvolver uma certa fixação por verdadeiras relíquias que começam a colecionar pela casa, pelas estantes da mente, pelos cantos do coração e pelas frestas da alma. Tudo que lembra seu filho, tudo que ele produziu, tudo que você confeccionou para ele e por ele, começam a povoar seu mundo interno e externo.


Hoje eu sofri um rapto diferente. Uma amiga muito especial, convidou-me para passar a tarde e inicio da noite, com alguns amigos dela e do marido, num sítio, num município aqui próximo. Depois de todas as minhas exigências e garantias, e com menos de meia hora concedida para que eu me arrumasse, fomos. Apenas no caminho, depois de quase três horas que já estávamos juntas, ela confessa que iriamos dormir lá. Obviamente, fiquei louca. 

Passado o pânico inicial, pensei, alguém há de voltar para a cidade e me dará carona, nesta hora nem lembro da minha vergonha. Não quero de forma alguma não voltar para casa, não acessar o blog, não entrar no quarto de Rafa, não chorar sua falta e sua ausência, não ver nossas coisas, não sentir o seu cheiro em suas camisas. Sabe, coisas que se tiver vontade de fazer, nada me impede. Mas se eu não tiver em casa, nada poderei fazer. Como não falar dele, não escrever sobre ele?



E então começou o suplício. Primeiro, não estava a vontade de falar com ninguém sobre a morte de Rafa. Ninguém o conhecia, nem me conhecia. Não queria dar detalhes, nem ser vitrine. Para essa fase, passamos sem problemas, afinal parecia que o grupo já sabia a minha historia, e fizeram de tudo para me distrair e não tocar no assunto. 


Mas eu queria mesmo era postar no blog, é como se aqui fosse o espaço do dia inteiro só meu e de Rafa, aqui falo do meu dia e da minha dor. Era como o tempo que era destinado para ele, só para ele, e mesmo eu não podendo perguntar como foi o dia dele, o que ele fez, ou o tempo que eu levava cozinhando para ele, ou lavando a blusa da escola a noite, ou vendo ele jogando na net, ou fazendo um lanche na rua, ou assistindo qualquer coisa. É meu tempo com ele, e não abro mão.



As pessoas não entendem. Não entenderam e me perguntaram. Você escreve todos os dias. E eu me perguntava... você beija seus filhos todos os dias? Você se banha todos os dias? Você come todos os dias? Você fala com sua mãe todos os dias? Por que eu não posso fazer uma coisa que me aproxima de meu filho, que não está mais conosco, todos os dias? E apenas disse sim. 


E ela retrucou, você nunca faltou? E eu pensei, mãe não falta para pegar filho na escola, não falta para dar o remédio, não falta para dar o banho quando quebra o braço, a perna, a unha...mãe não falta. Mas respondi, faltei sim. Faltei quando estive fora do pais sem acesso a net. Faltei quando estava completamente dopada por opção, remédios que me deixassem dormindo 24 horas porque nem falando da dor, ela amenizava. Mas quantas vezes, acordo de um cochilo para escrever no blog, quantas vezes escrevo mais de uma vez no mesmo dia.


Talvez um dia isso passe. Talvez um dia isso não seja tao necessário. Talvez um dia isso fique mais espaçado, como um filho que casa e a mãe não pode (poder, pode mas não deve) ligar e vê toda hora, e ela vai se limitando a disponibilidade do casal, e aquele filho que ela via todos os dias, ela começa a ver apenas no almoço do domingo, e depois com os netos, os filhos tendo que se revesar nas duas casas de avós isso vire visita quinzenal, e depois quem sabe os netos crescem e a casa fica vazia novamente. Mas até essa fase chegar, é uma relíquia estar aqui.


As pessoas não entendem que quando perdemos filhos tudo vira relíquia. O ultimo sabonete, o restinho do vidro do perfume que ele mais gostava, o ultimo tubo de pasta de dente, a escova então, o papel de bala no bolso da calça que você também não lavou porque tem o cheirinho dele, ou a ultima embalagem de nuggets que ele comeu, que eu recolhi do lixo da cozinha e pus de volta no congelador, vazia, só para eu abrir e continuar vendo as coisinhas que comprava para ele.


Na minha geladeira ainda tem a ultima lata de leite condensado aberta, um molho temperado que ele gostava e o vidrinho de molho inglês que ele usava nas sopas, e do lado de fora, num pedaço de papel preso com um imã, meu nome, com meu antigo endereço, com a caligrafia dele, e um bilhete que ele havia escrito para mim. Não admito que ninguém nem toque, que dirá que aquilo saia ou seja rasgado ou sujo. 


Meu Deus eu nem moro mais lá...só que não terei nenhum outro bilhete escrito por ele daqui para frente, então todos os que tenho são relíquias. Hoje, guardo as provas que recebi com as notas dele, depois que ele se foi. Todos os anos o ajudava a jogar fora o material escolar desnecessário. Se pudesse eu queria te-los, novamente aqui em casa, porque tem dias que as horas só passam quando mergulhamos neste universo. 


Parece que quanto mais dói, mais depressa passa, e a gente vai revirando todas as relíquias e tantas coisas passam a ter outros valores. Cada eu te amo nas tarefas escolares de dia das mães, cada bilhetinho que ele te escreveu, cada palavra solta no papel, hoje parece ser um discurso terno e tao eloquente ao nosso coração.


Hoje todos esses bilhetes e pequenas lembranças são nossas relíquias porque materializam uma época que não volta mais, de uma pessoa que nos deixou e em seu lugar nasce uma arvore frutífera de lembranças e saudades.

2 comentários:

  1. Minha querida Anna, estas não sãos nossas pequenas relíquias, para nós elas são grandes e eternas pois não teremos outras por parte dos nossos Amados Filhotes, é incrível, mas eu achei no bolso da calça do meu Teteu duas balas yorgut aquela do papel rosa, ele gostava também da 7 belo, ao mexer no bolso da sua calça eu achei as balas e nunca falei nada para ninguém que as guardei. Ao passar do tempo só restou o papel e mesmo assim estar guardado
    Hoje lendo sua postagem percebi como são parecidas as nossas atitudes, eu te entendo, as pessoas é que não nos entendem que precisamos continuar sendo mães todos os dias de um filho que não podemos ver, nem tocar ou ouvir, mas que vive intensamente dentro de nós com tudo que vivemos ao seu lado e com toda a força do nosso amor.
    Então isso é o nosso FOLEGO DE VIDA e as nossas GRANDES E ETERNAS RELÍQUIAS que jamais ficará no passado de nossas vidas, e por toda a nossa existência iremos traze-las para o presente de nossas vidas................Eu Te Amo

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    1. Marcia, eu me surpreendo demais com as nossas reações, e com o tanto de coincidência que a vida nos apresenta quando discorremos sobre nossa dor e a forma de lidar com ela. Você está certa, são grandes e eternas relíquias mesmo. Para um mundo um objeto insignificante, digno de lixo, para gente, um objeto precioso e valoroso que nos ajuda a preencher um cantinho de nossa vida, chamada lembrança. Também te amo demais. Não vejo a hora de nos encontrarmos, porque nos conhecemos profundamente. Que nossos filhos continuem fazendo a diferença em nossas vidas e nas vidas de pessoas que sentem a mesma dor, andar contigo é um balsamo, viu. Que Deus continue te usando e ungindo teu ministério. Pastora de vidas, que na dor continua semeando esperança. Bjs.

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