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segunda-feira, 30 de julho de 2012

EU ME SINTO SEM DIREITOS

Uma semana de trabalho. Como os dias se arrastaram. Não foi como a gente esperava, não  trouxe a rotina do sono, não preencheu meu tempo, não me deixou parar de pensar em Rafael nenhum só segundo e consideravelmente é o lugar que menos me sinto bem. Mas querer se sentir bem depois que perde um filho, independe de lugar e ocasião. Sei que é um dever de todas as mães, procurar de alguma forma sair desse buraco, mas é como se não sentíssemos que temos esse direito.

Ontem uma pessoa me perguntou sobre a minha família, e eu na hora tenho vontade de responder. Qual? Quando a gente tem filho, a família da gente são nossos filhos, o marido, etc.  Quando a gente não tem a gente mesmo morando sozinha tem os pais como referencia de sua família.  Mas quando a gente, perde nossos filhos, por mais próximo e companheiros que seu núcleo familiar lhe seja, você se sente despatriado.  Eles não falam a sua língua, a língua dolorosa da mãe que questiona, indaga, muitas vezes murmura e lamenta, e clama e chama pelo filho todo o tempo. Tampouco conhece seus costumes, porque só você sabe os que deixou de fazer porque ele não está ali, ou os que continua fazendo e ninguém entende o motivo.

Logo no inicio, eu tinha a necessidade de desmanchar a cama de Rafael todas as noites para depois, que passa-las em claro, refazer. Esticar a colcha ou edredom (apesar do calor do nordeste, era comum ele colocar o ar condicionado no limite permitido pela regra daqui de casa, e ficar todo coberto, empacotado no edredom), porque ele me enrolava ao fazer a cama todas as manhas...ele dobrava de qualquer jeito a coberta e a escondia com o edredom, quando eu reclamava ele dizia, mainha para que forrar a cama, a noite vai desarrumar mesmo...e assim fomos indo ele tentando desdobrar e eu vez em quando fiscalizando o mal feito.

Sem Rafa por perto, eu fui me afastando de minha família, porque me incomodava qualquer tipo de manifestação de volta da vida ao normal para eles.  Não que eles não tenham esse direito, tem e deve. Não que não sintam, sei que sentem. Mas eu não consigo ver. As vezes me incomoda ate a alegria de pessoas que amo e que merecem o que conseguiram ou galgaram. É tão horrível sentir-se mal porque a vida volta ao normal para as pessoas que você ama, tanto quanto porque a vida não volta também.  É assim, eu ficava preocupada e muito abalada  por todo mundo que me cercava chorando a falta de Rafa, mas também ficava por quem não sentia ou voltou rápido as atividades.

Lembro que ano passado, um mês depois do falecimento de Rafa, amigos dele e meus irmãos foram para as festas juninas. Eu fiquei me controlando para não dizer um monte das besteiras que pensei, e com a mesma força pensava que bom que eles conseguiram. Passou-se um ano. Minha reação é a mesma. Como pode?  Parece que para as mães, mesmo que a gente ache graça de determinada piada e mesmo que nós consigamos rir, tem uma hora ali no meio do riso que a gente se pergunta porque estamos rindo. Como podemos rir e nos dizemos intuitivamente para nos olhar no interior e a vontade de rir passa e vem uma culpa tremenda.  Pelo menos comigo isso é recorrente e algumas mães que me ouviam falar disso, disseram que também se sentem assim.

Se me sinto assim na família, imagina no trabalho. Onde as pessoas tem menos relações e se envolvem afetivamente bem menos, então falar do que se curte ou do que se faz, ou do aniversário, do jantar, da festa, da viagem, da comemoração, do noivado, da formatura, do neto que nasceu, e de toda a gama de atividade que os filhos ou sobrinhos fazem, me dão náuseas. Queria gritar e dizer hei... não quero saber, entenda que isso não valeu para mim.  Eu quero falar de morte, de enterro, da ultima semana, do que ele fazia, do que ele gostava. Eu quero falar dele. Mas na hora que eu sentir vontade. Não quero te dizer as ultimas palavras, ou o que de sobrenatural eu senti, ou se ele teve ou não premonição d e vai morrer, ou as inúmeras besteiras que temos que ouvir para saciar a curiosidade alheia.

Se as pessoas tão erradas? Não, a gente é que perdeu o direito de continuar...é assim que nos sentimos.

Ninguém entende. Minha família acho que não me compreende na maior parte do tempo. A forma que achei para lidar com isso foi me isolando. Eu m isolei, eles também. Continuamos nos amando, embora longe, apesar de morarmos no mesmo bairro, e na mesma quadra. Restaram os poucos que não desistiram, que apesar do meu isolamento insistiram e quando eu entro no meu cativeiro não se surpreendem e quando saio dele não me julgam, apenas me ouvem e me deixam falar de Rafa, meu choro não incomoda, minhas camisas não machucam, minha incapacidade de retomar a vida não os frustram e apesar da leveza que adicionam aos meus dias,  choram muito a minha dor.

Família, hoje eu falo da minha.  Rafael era louco pelos tios. Por Sidney verdadeira adoração, por Fefe um cuidado e um amor, por Lícia,  era fã. Quando Lícia viajou para Juiz de Fora a primeira vez com uns seis, sete anos, Rafa sentiu tanto que quando ela voltou ele passou a chama-la de Tia e a pedir a benção (eles só tinham três anos de diferença). Minha irmã tem um humor refinadíssimo e tinha um fã incondicional. Ela o chamava de chato e de porre, e declara a falta que sente dele quase sempre. Dos avós meu Deus...o avô Roberto dele, era admirado, amado, Rafa cresceu fazendo massagens em Roberto e sendo muito mimado. Algumas vezes que viajei com minha mãe para cuidar de doença da família, Rafa podendo ficar com o pai, dizia que queria ficar com o avô. Eles se davam super bem, não penso no avô que meu pai não foi, porque sei o avô que Rafa teve. E minha mãe...Rafa justificava tudo que eu reclamava a ele que minha mãe não ia gostar ou querer, dizendo tenho sim mãe o direito, vó é mãe dos vezes, então minha vó vai fazer, vai dar, vai querer...e cresceu dizendo isso a ela...vó é mãe duas vezes.

Esse fim de semana, uma prima minha estava aqui em Aracaju. Família próxima, crescemos juntas, temos igualmente como diz ela 29 anos (ela subtraiu 10 anos e acha que todo mundo engole...vou registrar aqui que não), mas nossa diferença de idade é de 01 ano.  Não sai com ela, não fui aos pontos turísticos, aos restaurantes que gostávamos, a orla, aos shows, ou  ao Saco (onde fica a casa de praia da família, onde Rafa passou suas ultimas horas). Não consegui fazer nada disso. Ela retorna para casa hoje. Apesar de todos os direitos que as pessoas tem, as mães que perdem filho, continuam se sentindo sem direitos.


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