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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

EU SOU BARRO, ES O OLEIRO.

Hoje foi um dia insuportavelmente triste, insuportavelmente solitário, insuportavelmente doloroso e conforme foi passando, mais doído era capaz de se fazer, até que seu apogeu se deu no cemitério, onde fui levar as gerberas do mês, a lapide e resolver colocar a pedra no lugar do cimento onde eu havia escrito e desenhado um coração com um ponto dentro representando que ele sangrava, estava seriamente ferido.

Fiz meu trajeto de costume, comprei as flores, escrevi um texto, coloquei as flores devidamente ornamentadas na água e continuei, ali chorando e conversando e desabafando com Deus. Lembro de meu pai, da forma como ele arrumava quando íamos levar flores para minha avó, lembrei do tumulo sem reforma ainda, sentei no batente e lembrei das vezes que levava Rafa quando ia levar flores para meu pai, a brisa suave, o cheiro das flores, recostei-me e pensei sou barro Deus e estou disforme, não virei peça alguma, não tenho serventia, não sei quem sou, estou em crise, não estou conseguindo me ver só como filha, eu sou mãe, mãe sem filho, Senhor meu barro não tem liga, meu contorno não me define, tá doendo tanto.

E em seguida perguntei a um dos funcionários se ele poderia colocar a placa de granito no lugar, o que eu precisaria fazer, e ele disse você não precisa fazer nada, eu vou fazer para a senhora. Sentei e ele foi pegar suas ferramentas: um martelo, um ferro, carrinho de mão com cimento, colher de pedreiro e dois parafusos. E eu sentada ali chorava.

Ele começou tirando o excesso de cimento, depois meteu a colher de pedreiro no coração que eu desenhei na lapide no dia que Rafa partiu, e começou a bater e a desmanchar o coração com a colher de pedreiro, e eu pensei neste verso bíblico, e não me continha, e quanto mais eu chorava mais ele aprofundava escavando o coração. Vi ali a representação do que Deus está fazendo com o meu coração, esmiuçando, burilando, trabalhando, mas estava doendo, depois que eu estava no choro catártico, ele pegou o martelo e quebrou o coração, furou e aprofundou na primeira camada dos tijolos, eu percebia que a ferida era profunda e que a cicatriz não sumiria.

Quebrou em mais quatro lugares, furou, enfiou parafuso, bateu, voltou a medir, voltou a quebrar, a bater a aprofundar o furo e depois varreu e pôs o cimento, nivelou e colocou a tampa de granito, durante esse processo, eu só chorava, via nas mãos daquele pedreiro o que Deus estava fazendo em minha vida...ainda estou na fase de quebrar, de furar, de levar as marteladas, apesar de querer estar já pronta, mas ainda não, ainda sinto cada ferramenta do oleiro machucando meu coração.

Algumas pessoas passavam olhavam para mim, e sem o nome na lápide se aproximavam para ver a lapide que eu estava instalando, se ofereciam para pegar água ou se eu precisava de alguma coisa... não sou de escândalos, choro calada, mas choro sem restrições de tempo, faço o que meu espírito pede, por isso preciso ficar em casa todo o tempo, aqui não preciso justificar nada para ninguem, só choro. E minha alma, meu corpo e meu espirito, eles choravam. Choravam os sete meses longe, choravam o Natal, choravam a falta, choravam a saudade, choravam e choravam. Até que chega uma moça e me pergunta, você era a mãe de Rafael, respondo, e ela já engata falando: "eu também perdi minha filha"; pergunto quantos anos, ela disse 17, e fala, "tem dois anos e 04 meses que Rafaela partiu, ainda choro todos os dias, minha vida não votou ao normal", e continuo me explicando que só uma mãe pode entender outra, e eu ali sentada aérea sem saber o que fazer, eu estava ali chorando e clamando ha quase duas horas eu não tinha forças para levantar.

Ela me contou sobre a causa mortis de Rafaela, em seguida ele precisou me pedir um abraço eu não tinha reação, pensei dois anos e chorando assim, eu morrerei antes, espero Senhor, me leve antes, levantei nos abraçamos e choramos muito. Ali foi o meu Natal, um abraço irmanado na dor, no luto, na falta.


Não sei o nome dela, o que faz, quantos anos, qual o sobrenome, onde mora, quem conhecemos em comum, que conselhos ela me daria porque já tem mais tempo convivendo com a falta da filha, mas conheço a sua dor, em tamanho e profundidade.

Depois nos despedimos e o coveiro me fala, não gostamos quando a senhora vem, somos pais, e não gostamos de vê-la desse jeito, não sabemos medir a sua dor, e eu pensei, eu respondi que não podia deixar de vir, era meu filho, único, eles disseram sabemos, as pessoas passam e falam dele com alegria, muita gente conhecia e comenta que ele era um menino bom, mas mesmo assim a gente não gosta de ver a senhora aqui, a gente se machuca porque não sabemos medir a sua dor, nem dar para imaginar...e eu pensei,  a mãe de Rafaela sabe; a mãe de Rafael Bispo (Neide) sabe; a mãe de Mateus (Márcia) sabe; a mãe de uma menina que também desconhecia Márcia mas que chorou com ela no cemitério também sabe; a mãe do menino que encontrei essa semana que chora há 45 anos a morte de seu filho, quando ele tinha dois anos sabe; a mãe de Ewerton (D. Heloizinha) sabe; a mae que perdeu o filho sabado passado no mesmo lugar do acidente de Rafa enquanto eu passava naquela estrada e ainda vi seu corpo estendido no chão também sabe; minha ex-sogra, avó de Rafa, mae de Keko, que passara o primeiro Natal sem o filho e sem o neto, também sabe... a dor que aproxima mães que perderam seus filhos. Compreendemos-nos por excelência, nos fortalecemos mesmo quando estamos fracas questionando a obra do oleiro, porque enquanto nossos filhos voltam ao pó, somos barros sendo trabalhados na mão do oleiro.

Escrevi para você e pus lá meu filho querido...mas sem palavras para o Natal, pelo menos ate aqui, não consigo desejar...só olhar no olho e chorar....e torcer para que isso acabe logo.

Rafael, eterno filho meu melhor amigo...
Hoje faz sete meses sem você, sei que imaginaria a falta que nos tem feito, quantas saudades temos guardado no peito e as vezes ela desce pelos olhos e inunda nosso corpo, tem horas até que embaça a nossa capacidade de olhar para frente.
Cada mês é mais dolorido, são mais lembranças, menos historias para contar, mais coisas que você não fez, não viu, não participou, e isso nos deprime tanto.
Mas hoje em especial, filho, que antecede nosso primeiro Natal separados, apesar da saudade, espero que a festa de aniversario de Jesus seja bem divertida e que você seja a graça do amigo secreto, se é que tem segredos aí. Aqui, você continua sendo nosso desejo de presente de Natal e do resto da vida.
O primeiro dos inúmeros Natais, quem sabe, sem você, e hoje sem sentido para gente e sem graça. Mas pus o tapete que você amava na porta do seu quarto e o presente no sapato também não vai faltar porque creio que não estamos separados, só não nos vemos, mas nos sentimos, nos amamos e nos fortalecemos. Em dias como hoje gosto de pensar assim, mesmo que as vezes duvide se isso é possível, no fundo desejo que seja  e me alegro um pouquinho em pensar que estás conosco, mesmo que dessa forma, só do lado de dentro. Ate breve. Amo você muito, e te espero no meu sonho de Natal.
Com amor,
Sempre  sua   eternamente  grata  por  ter  sido  sua mãe.

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