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quinta-feira, 7 de junho de 2012

A DOR APROXIMA

Eu sempre fui daquelas pessoas que defendiam que não necessariamente eu precisava viver determinada coisa para saber o que ela de fato significava.  Por exemplo, eu não precisava desafiar minha mãe para saber se um tapinha dela doía, obviamente que se meu irmão apanhasse por determinado motivo, eu não iria me comportar daquela forma, porque saberia que sofreria a mesma repreensão. Também não achava necessário apanhar para descrever este sentimento, a observação do comportamento do outro já me era necessário.  

E desta forma cresci.  Amadureci muito de observar o que acontecia com o outro, e de afastar algumas escolhas erradas dos outros, mas isso não foi suficiente para afastar de mim as minhas próprias escolhas ruins. Claro que quando fazemos, a experiencia é diferente de quando só ouvimos falar.  Eu sempre usei uma ilustração para os meus alunos e para Rafael, de uma coisa que aprendi na adolescência.  


Era mais ou menos assim: uma coisa é eu saber o que é patinação, patinar e patins. Posso descrever a forma, o modelo, a acrobacia, o possível tombo.  Outra coisa é eu patinar propriamente dito. Na primeira situação eu posso falar claramente sobre tudo, mas não vive-la diretamente. Já na segunda, eu posso até aquele momento não ter nenhum conceito definido, nem saber o que seja modelo, acrobacia, etc., mas ao descrever minha experiencia vivendo eu acabo conceituando as palavras e ações descritas na primeira situação.  Se me perguntarem qual é a mais intensa, eu vou dizer a segunda claro. 

Então passávamos a imaginar uma sala com inúmeras pessoas que tinham vencido o desafio de patinar pela primeira vez e se solicitássemos que cada um contasse sua experiencia, teríamos muita coisa comum, mas com certeza nenhuma experiencia seria igualmente descrita. Neste caso, eu imagino que tenha gente que fale que gostou e gente que desgostou da experiencia, o que tornaria alguns relatos completamente controversos e contrapostos.


Talvez isso valha para tudo na vida.  Eu já vi até, num grupo de mães que acompanhei logo quando me formei, de gravidas no período gestacional e no período imediatamente posterior ao fato,  descrever o nascimento dos filhos (e aqui falo do parto em si, de ver aquela pessoinha a primeira vez) não como a coisa mais importante da vida, ou porque sentiram muita dor, ou porque foi desesperador, ou porque não sentiram nada, ou porque estavam com depressão pós-parto, e mesmo que a maioria fale com uma emoção muito grande daqueles momentos que antecedem o conhecimento daquele serzinho, para algumas isso não era  absolutamente perfeito.


E esses relatos, tanto do caso de patins como dos grupos de mães que acompanhei  nos dois primeiros anos de minha profissão, logo depois fui atuar em outra área, e hoje agradeço de não ter persistido nesta área porque não saberia juntar meus caquinhos e continuar acompanhando essas novas mães que se aventuram na estrada recompensadora da maternidade. Mas voltando para a ideia, quando as pessoas falavam sobre suas experiencias, naturalmente geravam uma força que as aproximava ou as afastava da experiencia dos outros e assim elas se relacionavam.


Mas quando falo de mães que perderam filhos, e olhe que a dor só aproxima, porque parece que nos atraímos na multidão, neste período, do nada, as pessoas que de alguma forma vivenciam o luto se aproximam, e não me sinto julgada, mesmo que o processo de cada uma seja diferente, no luto a dor aproxima de um jeito e de alguma forma compreendemos o outro, mesmo que não estejamos no mesmo ciclo ou no mesmo time, no mesmo estágio, do luto.


Eu sempre ouço de pessoas que não perderam ninguém diretamente acompanhar ou cobrar, comparando as nossas experiencias, sou vitima muito desse processo.  Quando diz  a você está pior que beltrana, ou fulana está pior que você.  Engraçado, porque quando as pessoas casam, a gente não ouve comentários de que olhe fulana é mais feliz que você, o marido de sicrana engordou mais que o seu, o filho de beltrana é maior que o seu, e sua casa é mais arrumada que a dela. As pessoas ficam no limite, foi lindo o casamento, seu filho é lindo, o casamento fez bem para vocês estão gordinhos, a casa de vocês está aconchegante...mas não compreendem a morte, ou não tem a mesma discrição.  É como se soubesse o que a morte, o patins, mas como não viveu aquilo, fala da experiencia do outro e aí...compara.


Ontem uma vizinha aqui do prédio, uma pessoa que me viu adolescer, conhece meus avós, meus pais, conhece a família do pai de Rafa, conheceu Rafa desde pequeno, bem acompanhou todo o meu processo de casar, formar, trabalhar, ser mãe, separar, etc. Mais de 26 anos acompanhando a família, disse-me, nunca vi uma tristeza dessa, nunca vi uma mãe ficar assim. Eu não fiquei com raiva, nem envaidecida, nem agradecida. Não sabia se aquilo era elogio ou critica e não me senti bem nem mal, mas me incomodou, porque sei que minha dor não é maior que a dor de nenhuma outra mãe que amou seu filho, e que pode ser amada também, e pensei, e disse a ela, por mim eu já morria ontem, hoje, ficou sem graça e ela dizia, não, você é nova, bonita, e monte de outras besteiras para levantar o astral  aí perguntei, e a senhora não acha que chegou a hora de ir não? Ela disse não, que não queria morrer tão cedo porque ainda tinha os 03 filhos e mais de 05 netos para ver crescer. Tinha 77 anos, perdeu irmãos, cunhados e marido. Mas tinha os seus três filhos.  Todos os filhos casados, neto daqui a pouco namorando, mas pelos filhos, não quer morrer.  Então disse a ela...e se eles já tivessem morrido, ela baixou a cabeça e saíu. Nem nos despedimos.


Não penso que todas as mães pensem em morrer. Mas acho que em algum momento pensou. Não penso que todas as mães convivem bem com fotos, pertences, as coisas dos filhos intactas, mas sei que todas elas enfrentaram seus próprios conflitos para decidir se dariam ou não, se deixariam as lembranças pela casa ou se colocariam em caixas no porão.  Não sei quanto tempo ficaram sem dormir, ou sem comer, mas sei que todas enfrentaram seus dilemas pessoais para retomar suas atividades e hábitos, e que nunca mais serão as mesmas. E por isso elas me compreendem e me ajudam em orações, em palavras, em testemunhos, em trocas, em compartilhar.


Amo muito Neide, mãe de Rafa. Viemos de universos diferentes, temos idades semelhantes, e tivemos filhos com mesmo nome, mesma idade, parecidos no agir, no temperamento, e vitimados  no mesmo acidente, eram amigos.  Reagimos diferente a tantas coisas, mas nos compreendemos. 


Eu não tiro as camisas de Rafa. Ela só usava quando íamos a Delegacia e nas missas. Não se sente bem, mas um dia me pediu e fiz para ela, e não faço porque acho que a gente tem que usar o que sentimos bem. E eu me sinto muito bem carregando meu filho na foto.  Ele sempre gostou dessas homenagens e eu fiz tão pouco. Eu tive apenas duas camisas com foto dele e ele ainda era pequeno. A tatoo era só plano, para o futuro, ele só viu o desenho dos bonecos que acabei fazendo mais estilizado. Ele não viu a corrente com o nome dele, e me pediu tantas vezes, ou medalha com foto, chegou a pedir a Tata (filha de Patricia para fazer a dele).  


Reagimos diferente a tantas coisas, mas nos compreendemos. Eu não sai do lado do corpo do meu filho, ela não quis ver o dela. Eu vou ao cemitério sempre que tive vontade, ela nunca entrou nem no dia do enterro, fiquei na porta segurando a mão dela. Eu não voltei a trabalhar, ela não pára. Eu fiquei sozinha e fico dias e dias sem ver ou falar com alguém, ela não vai no quintal, não fica em casa sozinha nem vai para o trabalho só. A gente se compreende. Não precisamos falar nada uma para outra. A dor nos aproximou.


Mas tudo isso hoje é para falar de Márcia, uma mãe de outro estado, de outra região, com uma porção de costumes e de um universo diferente do meu, mãe de Mateus, mesma idade de Rafa, falecido seis meses antes. Nunca vi Márcia, nem Mateus era amigo de Rafa. Mas a dor nos aproximou. Márcia escreve e fala coisas que se eu tivesse que escrever não saberia ser tão precisa.  E sua dor, traz uma estrada de esperança que me faz querer acompanhar. O amor de Deus, e a certeza dos melhores planos do Senhor para nossa vida, não foi abalado no luto dela. E isso me comove. E mesmo experienciando o tratamento do luto de forma diferenciada, sinto-me compreendida por Márcia, e pelo perfume de Deus que ela exala.


Hoje mais uma vez fui presenteada por um carinho especial, pois suas palavras de exortação, amor, cuidado me fizeram ver quanta gente boa a dor aproxima da gente.  Nestes 12 meses e 15 dias sem Rafael, pude aprender coisas que nem em livros, nem em testemunhos e experiencias dos outros eu tinha chegado perto de viver.


Se quiserem me perguntar se eu abriria mão disso tudo para ter Rafa de volta, não tenham duvida que todas abriríamos mão de tudo, menos da salvação, para ter nossos filhotes nos braços, mas face a impossibilidade, é a dor que remanesce em nós que nos faz tocar a outra para as coisas que daqui para frente fazem a diferença.  


A dor aproxima as mães.


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