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segunda-feira, 20 de junho de 2011

FAZER O QUE VOCE GOSTARIA QUE FOSSE FEITO

Sábado, dia 18 de junho de 2011, eu estava me dizendo que cansei desta historia de reconstituir os passos e descobrir o motivo do impacto que causou o acidente que vitimou o meu filho.  Tem sido uma condição desumana passar pelo local do acidente, procurar as pessoas, investigar as versões, conversar com os moradores, ouvir e atestar a ocorrência de novos fatos, mas depois de cinco, seis ou oito horas massacrantes, onde representamos ter força, racionalidade, controle emocional, voltamos para casa mais vazia, mais incrédula, mais decepcionada com a humanidade, menos solidária.  Dá vontade de desistir.

Então faço um propósito comigo mesma, não quero mais saber de nada. Sei que todo mundo quer ter o direito de contar a historia do filho. Quantos anos, o que fez, onde cursou a faculdade, onde trabalha, quais são suas façanhas, seus hábitos, como se diverte, etc.  Eu só queria poder contar como você partiu. Quero só e simplesmente fazer o que você gostaria que fosse feito.

Imagino que mesmo com toda a dor de ter que identificar o que aconteceu naquela madrugada, pela natureza que meu filho tinha, ele não deixaria omissa a situação, ele buscaria esclarecimento, ele  buscaria trazer à tona aquilo o que de fato ocorreu.

Um dia, lembro que perdi a chave do carro. Deixei na costureira num sábado a tarde e ela fechou o estabelecimento, e como eu tinha ido a pé voltei para nosso apartamento sem perceber nada. Precisei sair mais tarde e não achei a chave. Acusei Rafael, óbvio, só morávamos nós dois e eu erroneamente dizia que ele havia pego a chave e não sabia onde colocava. Ele era uma criança com apenas 10 anos. Eu não tinha a cópia da chave, o carro já fora comprado assim. Também não consegui solucionar chamando o chaveiro, pois como a chave tinha segredo, o chaveiro fez a chave que abri as portas do carro, mas não o acionava.  Rafael não descansou enquanto não provou que eu tinha agido injustamente com ele, pois cheguei a castiga-lo.  Ficamos sem o carro até a segunda, quando a costureira percebeu a chave lá e nos ligou.  Rafael sempre comentava isso e argumentava sobre possíveis erros, mas que a verdade sempre prevaleceria.


Uma vez demitiram sem justa causa o porteiro do prédio onde morávamos.  Os argumentos da demissão impactaram Rafael, na época com 13 anos.  Rafael por iniciativa própria fez um abaixo assinado e procurou os moradores do prédio para aderirem ao pedido de retorno do funcionário.  Conseguiu a adesão de muitos moradores mas não a readmissão. Todavia, provou que os motivos para a demissão tinha relação com beneficiar uma outra pessoa para o emprego.


Também lembro de Rafa na primeira e unica briga na escola. Não gerou suspensão, ou castigo ou ficar sem recreio.  Ele era quarto ano do ensino fundamental, antigamente quarta serie do primeiro grau, e bateu em uma menina da sexta série, muito maior que ele, porque ela costumeiramente batia e tomava o lanche de um menino bem mais novo que o próprio Rafael.  Ele conversou algumas vezes, ela não parou, ele a enfrentou e correu para o banheiro.  Conversamos e eu o perguntei porque ele não chamou a tia, ou a coordenação, e ele dizia, que a menina aproveitava o recreio muita gente e ninguém fazia nada. Ele se encheu e fez. Disse que ele estava errado, que ele não podia fazer a mesma coisa que ela e que quando estamos com gente, conversamos, dialogamos, explicamos...porque gado é que se marca, fere, tange, engorda e mata.  Nunca mais tive problemas de senso extremo de justiça.


Nos três episódios que relato, onde ele foi vítima do abuso (chave), onde ele buscou o equilíbrio social (demissão) e onde ele foi fazer a justiça com as mãos (escola), vejo o sempre e velho bom Rafael. Aquele que tinha que argumentar e entender tudo o que se passava, que precisava estar com a sensação do dever cumprido e que não aceitava a injustiça. Aquele que conseguia entender duas palavras com profundidade: solidariedade e amizade.  Em todas essas situações Rafael fez amigos.


Eu estou cansada de buscar as respostas para as perguntas deste momento. Quero descansar, mas não consigo. Sei que não o trará de volta, mas quando penso o que ele queria, com certeza, ele não gostaria de ter coisas não esclarecidas.  As vezes me pergunto se ele conseguiu pensar em alguma coisa antes de partir, se teve vontade de falar alguma coisa, se gostaria que algo fosse feito, sei lá. Eu não sei o que aconteceu.   Não estava preparada para viver nada disso, mas saber que novos fatos podem me ajudar a entender tudo isso, por ele, não posso descansar, preciso pelo menos poder contar a historia. Sei como ele nasceu, por onde andou, como levou a vida, qual a sua essência. Só preciso, para acalmar meu coração, minha mente, minha estrutura, saber como partiu.

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