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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

COMO NAO SOMATIZAR AS PERDAS?

Hoje pela manha discuti com seu pai. Ele me cobrava uma reação diferente a esta dor, ele dizia que não podíamos ficar assim tão abatidos diante disso tudo, e que você não nos gostaria de ver desse jeito. Disse que ontem (quinta-feira, 18/08) quando estávamos na Delegacia, enquanto acompanhávamos o inquérito que apura seu acidente, que eu fiquei muito nervosa e em dado momento eu estava toda empolada.  Minha mãe, concordou e já emendou dizendo que também notou essa reação nesta semana comigo. Sei que todos se preocupam e tentam dizer que precisamos tocar a vida, reagir, voltar ao normal. 

O que acho que ninguém entende é que eu não me vejo mais como uma pessoa normal.  E estou fazendo o meu melhor, mesmo que não chegue a ser o desejável para o resto da humanidade, e que isso reflita uma fé incipiente, um comportamento depressivo ou um desajuste psicológico, eu só queria que por um minuto as pessoas se imaginassem sem família, sem o núcleo familiar em que vive, imagine que você dormiu e acordou sem eles, e eu me pergunto, onde está o manual, ou a bula que nos indique em quanto tempo você absorve tudo isso e diz para si mesmo, bem foi uma fatalidade, e toca-se a vida.  Eu tenho 86 dias tentando encontrar razão para as coisas, diria até para a vida. Rafael tinha 17 anos, dos quais 07 vividos apenas comigo, só eu e ele, hoje vivo só num mundo que não cabe ele, e sinto que não me cabe também sem ele, entende?

Não sei como não somatizar. Não sei como dizer para meu corpo que ele não repercuta o que eu sinto por dentro.  Como dizer as minhas pernas para não incharem se carrego aqui dentro um turbilhão de emoções e de amor que por mais que eu expresse, escrevendo, falando, chorando usando diariamente camisas com nossas fotos, ou me tatuando, ou carregando suas fotos em medalhas em meu peito, por mais que eu tente por para fora esse amor me faz me sentir pesada, porque o amor não chega no destino, não volta para mim porque não sei se chega ate você.

Ou como dizer aos meus braços e mãos que percorrem seu quarto e suas coisas e que tocam nos seus objetos, que eles não podem te afagar, te trazer para perto, te acarinhar ou te abraçar e não querer que eles não tremam nas primeiras teclas das mensagens que escrevo, ou que não sintam mais firmeza ao ter que pegar e apoiar objetos mais pesados.

Ou como não dizer para minha cabeça, que não esquece um só momento que você nao irá voltar, mais nunca, e mais nunca soa tão forte e tão duro, e não querer que minha cabeça lateje, ou formigue ou não me deixe descansar, repousar, dormir. Ou como não dizer aos meus ouvidos que ficam zumbido quase semanalmente que sua voz, sua risada, você chegando gritando mãe to com fome, não serão mais ouvidos.

Difícil não somatizar, difícil não dizer para meu corpo que não doa, se a dor começa lá dentro tão profundo, tão enraizada que ás vezes passo a mão na cicatriz da cesariana porque tenho a sensação de que ela se rasgará e me puxará para dentro de mim, como se eu fosse ser embrião em mim mesma, na tentativa de ser como um alento em te buscar nas reminiscências de meu ser em você e você em mim.

Gosto de ouvir seu pai falar que sonhou com você, sonho indiretamente junto quando ouço a simbologia dos sonhos que ele tem com você. Hoje ele falou que sonhou novamente contigo, e que você mais uma vez se mostrou preocupado, pedindo para ele conversar comigo, mas nao disse o quê, nem sobre o quê.  Sei filho, pela fé, que se você estivesse aqui vendo como reagimos a sua partida, você iria nos bronquear, iria nos exigir que ficássemos bem, iria se empenhar para nos ajudar, mas você não está aqui, e esse é o problema, a força que tínhamos para lutar com e por você, eu não encontro, neste momento, dentro de mim.   

Os sonhos também são reflexos de nossos pensamentos, frustrações, desejos, etc.  Talvez por isso eu também não tenha conseguido sonhar contigo, porque meus sonhos refletem minha expectativa de vida, nada, vazio, solidão. Então, nestes lugares você também não aparece.  Não é que eu sonhe que você não esteja mais aqui, é que não sonho de jeito algum e quando sonho, os sonhos trazem uma angústia por uma coisa que não consigo identificar, sempre parecido com perda.  Nestes dias sonhei que perdi moedas, perdi ônibus, perdi boleto para pagar conta, perdi coisa que não sabia o que era.  São de sonhos de perda que eu me lembro.

O pior é que olho para seu pai, e sinto a dor transpassante nele também. Sei que ele tem tentado reagir e tem sido muito companheiro e solidário na dor, embora, naquele jeito dele, as vezes me sufoca, porque não o queria ver daquele jeito, e mesmo assim ele manifesta preocupação comigo. Acho que a dor da perda é somatizada inclusive filho nestas horas em que não me sinto separada e sim unida pela dor, é como se juntos de alguma forma manifestássemos um pouco de força para lutar pela verdade sobre seu acidente, sobre defender quem voce era, de honrar seu legado e sua imagem.

E agora há pouco, vendo seu orkut, vejo o cara que me bronqueava de manha para eu reagir, ele postar uma cronica linda que Vinícios de Morais escreveu para o filho Pedro,  vou postar aqui, como forma de te demonstrar que você tambem nos uniu na sua falta, e que essa poesia também traduz a forma de dizer que também somatizamos no sofrimento de sua perda a alegria de sua chegada...

"Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado - a insensatez de um coração constantemente apaixonado.
E porque te fiz com o meu sêmen homem entre os homens, e te quisera para sempre escravo do dever de zelar por esse alqueire, não porque seja meu, mas porque foi plantado com os frutos da minha mais dolorosa poesia.
Da mesma forma que eu, muitas noite, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua.
E porque vivemos tanto tempo juntos e tanto tempo separados, e o que o convívio criou nunca a ausência pôde destruir.
Assim como eu creio em ti porque nasceste do amor e cresceste no âmago de mim como uma árvore dentro de outra, e te alimentaste de minhas vísceras, e ao te fazeres homem rompeste meu alburno e estiraste os braços para um futuro em que acreditei acima de tudo.
E sendo que reconheço nos teus pés os pés do menino que eu fui um dia, em frente ao mar; e na aspereza de tuas plantas as grandes pedras que grimpei e os altos troncos que subi; em tuas palmas as queimaduras do Infinito que procurei como um louco tocar.
Porque tua barba vem da minha barba, e o teu sexo do meu sexo, e há em ti a semente da morte criada por minha vida.
E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço.
Como as amplas estradas da mocidade se transformaram nestas estreitas veredas da madureza, e o Sol que se põe atrás de mim alonga a minha sombra como uma seta em direção ao tenebroso Norte.
E a Morte me espera em algum lugar oculta, e eu não quero ter medo de ir ao seu inesperado encontro.
Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder.
E amordacei minha boca para que não gritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto mais amordaçado, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias.
Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei.
E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar:
Assim é o canto que te quero cantar, Pedro (RAFAEL, grifo nosso) meu filho..."

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