Podemos dizer que saudade também é a pior forma de mutilação.
Ao perdermos um filho, sentimos como se tivéssemos sido mutilados. Mutila-se não só aquilo que faz parte da gente, que é sangue de nosso sangue, mas depois vamos tendo contato com um monte de coisas que também foram mutiladas em nós.
E a sensação é de que a dor da mutilação não é nova, ela sempre está ali, mas tem a capacidade de doer de forma diferente a cada descoberta e intensidade da nova mutilação.
O tempo passa mas a ferida não cicatriza, é uma mutilação que não se fecha. Dizem que com o tempo ela sangra menos, mas não sei se isso pode ser aplicado quando a mutilação é com nossos filhos.
Quando parte de nós nos é arrancado porque poderia nos levar a morte, como um trombose ou diabetes, ou hemorragia, ou trauma, etc., sentimos a dor mas também temos a consciência de que é melhor perder aquela parte do que perder tudo. Mas com a morte, nos levam tudo, não fica nada, não fica parte de nós, acho que nossos filhos levam com eles a nossa vontade de viver, de continuar.
E ainda temos a convicção de que não deveríamos ter sido afastados, arrancados, e começamos a brincar de Deus, a interrogar Deus e a todo custo tentamos dizer o quanto Ele estava errado em nos separar, ou quão injusto foi Sua decisão de tomá-los de nós. Acho que esse é um momento bem difícil da mutilação, onde a criatura se rebela contra o Criador.
A mutilação que falo produz dores em todos os sentidos. Dói fisicamente, o corpo dói, a cabeça dói, dói espiritualmente, nos sentimos fracos, derrotados, doentes no espírito. Questionamos tudo, todas as verdades defendidas anteriormente, questionamos Deus, questionamos a nós mesmos. Dói emocionalmente, é uma dor, um vazio, uma saudade. É como se gritássemos com toda a nossa força, toda nossa voz, com um folego sobrenatural e mesmo assim ninguém ouve. É uma dor psíquica, pois a sensação de que a loucura anda de mãos dadas conosco é muito presente. A gente se apega ao ultimo tubo de pasta de dente que ele usou, o resto de comida que deixou na geladeira, o bilhete que ele escreveu há mais de uma década, o cheiro do travesseiro a ultima roupa de cama usada.
Começamos a dar valor a coisas imperceptíveis antes. O papel da ultima bala que ele chupou e você achou no bolso da calça vira uma relíquia. E neste momento começa o nosso processo de auto-mutilação. Preservamos a memória deles, a presença deles, tentamos perpetuar as mesmas necessidades, mas elas não bastam para gente porque estamos mutilados e na ânsia de diminuir o vazio deixado nos mutilamos.
Hoje é véspera de completar 11 meses sem você. Também um domingo, também noite, também hora em que meu coração ficou apertado e ansioso, tentando me avisar sobre a mutilação a ser sofrida. Saudades é um tipo de mutilação.
Quando li seu texto foi impossível não lembrar da música:Pedaço de Mim (Zizi possi)quando ela descreve o que é saudade e diz "saudade é como uma fisgada de um membro que já perdi...saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu." e continuo sem saber o que dizer mas eu estou aqui, eu li . Ainda que tardiamente, me perdoe por não ter lido e compreendido, me perdoe por ter te ocupado com minhas coisas dia 22 não discernindo o tempo que vc estava vivendo e viveria, minha amiga... querida...estou envergonhada de canto como um sapato velho.
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